
Gurgel
Gurgel
O mercado automobilístico brasileiro é um dos mais movimentados de todo o mundo. Atualmente, o Brasil possui uma das maiores malhas rodoviárias e, com isso, desenvolveu-se uma necessidade desse tipo de transporte que aqueceu o mercado. Além disso, o brasileiro não possui uma cultura de usar o transporte público para tudo, principalmente com a precariedade dos sistemas.
Contudo, mesmo com todos esses motivos, apenas uma empresa genuinamente brasileira foi responsável por produzir automóveis que dispusessem de tecnologias daqui. Esse foi o caso da Gurgel Motores S/A, idealizada, criada e conduzida pelo engenheiro mecânico João Augusto Conrado do Amaral Gurgel.
A história da empresa
O ano de 1969 foi marcado por acontecimentos importantes no mundo. Muito lembrado por ser o ano que a humanidade conseguir pisar na Lua, esse também foi o período em que foi fundada a primeira montadora automobilística genuinamente brasileira. João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, formado na Escola Politécnica de São Paulo foi o responsável por esse projeto.
Ao se formar na graduação de Engenharia Mecânica no ano de 1949, João Gurgel sempre citava um acontecimento: o seu projeto de conclusão era um carro pequeno, popular e adaptado às condições de tecnologia brasileiras. No entanto, ele foi totalmente desanimado pelo seu orientador, que disse que carro não se construía, mas sim se comprava. Dessa forma, mudou para um guindaste mecânico, mas esse não era o sonho do brasileiro.
De caráter extremamente nacionalista, o grande sonho de Gurgel era um carro genuinamente brasileiro. Durante 20 anos depois da conclusão de seu curso, o empresário havia aberto uma companhia de luminosos. A partir da década de 60, e com o capital que havia levantado com sua firma, João passou a construir pequenos karts e carros de tamanho mini para crianças.
Já no ano de 1969 foi lançado um pequeno bugue, que a partir do já falado caráter nacionalista de seu idealizador, foi intitulado de Ipanema. Ele utilizava de um motor da Volkswagen, mais precisamente da Kombi. O carro, por ser bastante resistente e ter facilidade de passar em terrenos hostis, vinha sendo bastante usado pelos consumidores para esse tipo de finalidade.
Isso definiu o rumo que deveria ser seguidos pela Gurgel: a partir desse momento, a fábrica, que tinha a sede na cidade de São Paulo, mais precisamente na Avenida do Cursinho, começou a desenvolver e produzir veículos destinados a terrenos hostis. Isso deu origem, no ano de 1972 ao Xavante XT, carro que tinha um design parecido com os off-road dos anos 2000 e contava com pneus especiais para a lama.
Este modelo, por sua vez, deu origem a vários outros veículos, como o Xavante XTC em 1974, muito parecido com o seu antecessor, mas bem maior e mais quadrado. Os carros produzidor por João Gurgel, apesar de realmente serem genuinamente brasileiros, lembravam bastante os primeiros jipes norte americanos, que começaram a ser produzidos na década de 40.
O maior sucesso da marca em seus anos de história também foi lançado em 1974 e também era um descendente do Xavante XT. Inicialmente chamado de Xavante X 12, o veículo era classificado como um jipe de porte médio. Ele possuía um teto que poderia ser retirado pelo condutor a qualquer momento, se transformando assim em um conversível. Anos mais tarde, o carro ficaria conhecido apenas como X 12.
Nessa época, o relativo sucesso da marca, porém, se deu ao fato de não haver concorrência no mercado automobilístico. Isso se deu pelo fato de que, por estarmos em um momento de Ditadura Militar, as importações eram bastante controladas para o país, que privilegiava o mercado interno. Existiam apenas 2 veículos que concorriam diretamente com o X-12: O Toyota Bandeirantes – o qual era uma espécie de versão brasileira do Land Cruiser – e o Jeep Willys – veículo norte americano que havia sido pioneiro nesse tipo de automóvel.
Esses dois modelos possuam tração 4 x 4 (o X-12 possuía tração apenas nas rodas traseiras. Por isso e por outros motivos, apresentavam um desempenho consideravelmente melhor do que o carro brasileiro. Contudo, devido a dificuldade de importação, esses possuíam um valor muito alto, tanto quanto ao preço de compra quanto aos custos de manutenção.
No ano de 1973, em busca de um espaço físico maior para a produção – que havia aumentado bastante – decidiu-se que a empresa compraria uma fábrica na cidade de Rio Claro, situada no estado de São Paulo. Isso ocorreu e a inauguração da nova fábrica aconteceu dois anos mais tarde, em 1975.
O principal motivo de aquecimentos das vendas na década de 70 foi a escolha do X-12 para ser o veículo oficial do Exército Brasileiro. Como essa instituição possuía lideranças com bastante caráter nacionalista, a utilização de um veículo produzido e desenvolvido no Brasil seria o ideal. Para fins militares, havia modelos que eram produzidos unicamente para isso, com diferenças em sua pintura.
Um ano depois da inauguração de sua fábrica em Rio Claro, a Gurgel apresentava o X-12 TR, que era idêntica ao anterior, mas possuía teto rígido. Ainda na década de 70, a companhia chegou a ser a primeira firma brasileira a exportar veículos, uma vez que um quarto das produções eram mandadas para fora do Brasil. Em 1978 foi observada uma média de produção relativamente alta, já que 10 carros saiam da sede diariamente.
Entre esses, protagonizavam o X12 e o X15, já que eram os dois modelos comprados pelo Exército Brasileiro. Um ano depois, em 1979, alguns modelos produzidos pela Gurgel foram expostos em um dos maiores eventos automobilísticos do mundo, mais precisamente no Salão do Automóvel de Genebra, onde foram muito bem recebidos o furgão X15 e o X20. Foi o ponto alto da trajetória da empresa.
Entrando agora na década de 1980, a empresa continuava a ser pioneira em várias tecnologias no Brasil e em toda a América do Sul. Já no segundo ano da década, em 1981, foi lançado um veículo chamado de Itaipu E150, que tinha um motor totalmente elétrico.
Contudo, os modelos que tinham essa tecnologia não encontraram espaço no mercado e acabaram tendo suas produções descontinuadas. Especialistas dizem que o maior motivo para isso eram os altos custos da bateria usada para o motor, além da baixa autonomia que eles apresentavam.
A partir do conhecimento do sucesso que vinha fazendo, sendo responsável por mais de quatro mil exportações para aproximadamente 40 países, os principais meios de comunicação classificavam a Gurgel como a maior multinacional genuinamente brasileira. O dono, João Gurgel, não gostava da nomenclatura e acabava por fazer um jogo de palavras, dizendo que a companhia era, na verdade, “muitonacional”, uma vez que todo o dinheiro e o desenvolvimento eram daqui.
Produziu muito nessa época, período em que a linha ultrapassou o número de 10 modelos diferentes que eram produzidos sob encomenda. A mais notável realização da empresa nessa década se deu no ano de 1987. O protótipo que começou com o nome de 280M e foi desenvolvido a partir de um projeto chamado Carro Econômico Nacional (CENA) tinha o objetivo de ser o utilitário mais barato do país e com bom rendimento nas vias urbanas. O objetivo era de que o carro não custasse mais do que R$ 3 mil para o consumidor brasileiro.
Infelizmente, o objetivo não foi alcançado devido ao alto custo de produção que se tinha. Inicialmente, o preço seria de R$ 9 mil para suprir todos os gastos e obter uma margem de lucro considerável. Contudo, um plano do governo para favorecer o cenário nacional estabeleceu que a empresa devesse pagar apenas 5% de Imposto sobre o Produto Industrializado (IPI), enquanto os concorrentes pagavam 25%. Isso ajudou para que o preço do veículo saísse de fábrica custando R$ 7 mil.
Dessa forma, mais barato do que todos os seus concorrentes, o carro fez um limitado sucesso no cenário nacional. Com o slogan de “Se Henry Ford te chamasse para ser sócio, você não aceitaria?” Gurgel estabeleceu que todos que comprassem o veículo – que ao final do projeto adquiriu o nome de BR 800 – e desse mais R$ 1,5 mil iriam adquirir uma parcela de ações da empresa. Isso aconteceu sendo bastante benéfico para os consumidores, uma vez que as produções só aumentavam.
A década de 1990 começou e com ela a crise iria se instalar na empresa. Isso se deu devido a varias medidas de abertura para o mercado internacional, protagonizados pelo governo de Fernando Collor de Melo. Desse modo, modelos como o Uno Mille se demonstrariam fortes, melhores e mais baratos do que os exemplares produzidos pela companhia brasileira.
Para tentar se reeguer junto à crise, dois anos depois – no mesmo ano do impeachment feito ao ex presidente Collor – foi lançado o Gurgel SuperMini, que tinha linhas que se aproximavam mais do que era produzido na época. O carro ainda serviu para suprir um atraso na entrega do BR 800, onde muitas pessoas que haviam comprado o veículo ainda não o tinham recebido.
Contudo, o modelo não vingou e o público geral brasileiro ainda preferia os modelos internacionais. A última tentativa de reerguimento da empresa se deu com o Motomachine, que visava construir um carro inovador, que possuía portas translúcidas e era bastante diferente do que a população estava acostumada.
Poucas unidades foram produzidas e o carro também não vingou. Apesar de ter feito o seu melhor ano em 1991, vendendo mais de 3700 unidades de veículos, apenas um ano depois a Gurgel enfrentava a sua pior crise, comercializando pouco mais de 1000 automóveis.
Em 1993, passando por uma crise financeira enorme, a empresa tentou realizar uma concordata – acordo que um comerciante ou empresa faz com as partes que estão devendo, de modo que consiga parcelar o pagamento e dar garantias, para assim não declarar falência. No entanto, não deu muito certo, pois a companhia não conseguia arcar com as promessas feitas para os credores.
Dessa forma, no ano seguinte a companhia tentou a sua última jogada: pediu ao governo um empréstimo de R$ 20 milhões, a fim de sanar todas as dívidas que o impediam de funcionar. Contudo, esse pedido foi negado e então a empresa declarou falência. O terreno que abrigava a fábrica em Rio Claro foi vendido pela justiça apenas em 2007, pelo valor de R$ 16 milhões. Esse dinheiro foi usado para pagar dívidas trabalhistas, as quais ultrapassavam o valor de R$ 20 milhões.
Inovações tecnológicas da Gurgel
Apesar de não ter suportado a concorrência internacional e ter declarado falência perto da metade da década de 90, a Gurgel deixou um legado de grandes inovações tecnológicas para o Brasil. Em primeiro lugar, a companhia foi a primeira da América Latina a produzir em série um carro que possuía motor elétrica. E fez isso mais de uma vez.
Além disso, as maiores inovações da marca estão relacionadas à carroceria dos carros. Em uma demonstração ocorrida na década de 70, o dono e idealizador João Gurgel batia no X 12 com um martelo. Eram batidas firmes e bastante barulhentas no chassi, e mesmo assim o carro apresentava poucas alterações. Isso se dava por um projeto patenteado pela empresa, que ficou chamado de “plasteel”: uma liga entre aço e plástico que aliava a alta resistência a torção e ainda tornava difícil a deformação.
O material usado para a construção da carroceria dos carros da marca também eram novidade: feitas de plástico e reforçadas com fibra de vidro. Esse tipo de construção era perfeita – e é usada até os dias de hoje – para bugs utilizados em regiões litorâneas, uma vez que é consideravelmente mais resistente à ferrugem.
Em seus quase 25 anos de produção, foram comercializados mais de 40.000 unidades dos modelos produzidos pela Gurgel, sendo por um tempo uma das empresas mais bem sucedidas do Brasil.
No ano de 2004, o registro de marca da empresa com o nome de Gurgel Motores expirou junto ao Instituto de Propriedade Industrial (INPI). Dessa forma, pode ser adquirido por qualquer pessoa, e então o empresário paulista Paulo Emílio Lemos comprou o nome e o logotipo da marca pelo valor de R$ 850,00. Por não ter consultado nenhum membro da família, foi movida uma ação judicial contra o empresário. Contudo, o judiciário alegou que Paulo agiu dentro da legalidade e cedeu os direitos da Gurgel. Em 2007, surgiram boatos de protótipos que sairiam do papel, mas nada foi concretizado e não é notada nenhuma movimentação nesse sentido.